POESIA E PRECISÃO 
As aquarelas de José Lutzenberger como representação
da história e do cotidiano (1920 – 1951) *
Ângela Ravazzolo, Mestre em História

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(...) Lutzenberger produziu uma arte que não pode ser classificada ou enquadrada em algum momento ou escola pré-determinada, mas que reúne características específicas e pessoais de um olhar estrangeiro sobre a cidade e o campo rio-grandense e ao mesmo tempo de um olhar relacionado à cultura visual mais tradicional que dominava as artes plásticas nas primeiras décadas do século XX. Lutzenberger foi um homem de seu tempo, mas a sua maneira.

Sobre Porto Alegre, ele empregou em várias aquarelas de temática urbana, algumas delas mostradas aqui, sua verve humorística, o mesmo tom irônico de seus escritos sobre o cotidiano familiar nos diários que foram recentemente traduzidos. Seja nas lavadeiras que se encontram à beira do rio para conversar, seja no mendigo que briga com os cachorros ou no Bataclan que oferece seus produtos na Rua da Praia, os personagens populares do artista se relacionam com imagens caricaturais, com uma certa ironia, em alguns momentos chegando a ter as formas do rosto distorcidas.

Lutzenberger foi um cronista visual. Um cronista que percebeu as diferenças sociais que desfilavam nas ruas, com negros e mendigos maltrapilhos (vestidos com roupas que o artista escolheu pintar com tons escuros e pouco vivos) se contrapondo a casais muito bem vestidos e aprumados (em roupas de cores vivas).
Entre as imagens dos negros, nota-se, por exemplo, relação com atividades de trabalho (lavadeiras à beira do rio, o carregador de armazém, o próprio Bataclan expondo seus produtos no meio da rua). Entre os mendigos e habitantes pobres das ruas, há também uma certa aproximação com os animais – os cachorros são companheiros do mendigo que desfila em frente a uma residência abastada (em Mendigo e Cachorros) e também do menino maltrapilho e negro que caminha pela rua, sem pisar na calçada por onde as madames e um menino bem arrumado passeiam (em Cena da Rua da Praia).

Outro ponto importante dessas cenas é o olhar minucioso que o artista joga sobre esses tipos humanos. Lutzenberger não se contentou com paisagens amplas da cidade (que também fazem parte de seu acervo), ou com retratos tradicionais de cidadãos ilustres, ele optou também por uma “investigação” detalhada dos personagens ditos populares, pertencentes a grupos sociais economicamente desfavorecidos e que pouco apareciam, por exemplo, nos trabalhos historiográficos da época.

Foi um cronista que também escolheu mostrar uma cidade nostálgica, que possivelmente se perdia em meio ao vertiginoso crescimento urbano daquelas décadas. A arquitetura que emoldura suas cenas urbanas é baixa, de casarios e fachadas comerciais, pouco mostrando sobre arranha-céus ou grandes viadutos que estavam começando a se destacar na paisagem da cidade.

É como se, ao percorrer os bairros da cidade e observar seus habitantes, ele olhasse mais para o passado que os havia carregado até ali do que para o futuro que os esperava nas próximas décadas do século XX – um tempo difuso o do olhar do artista. (E aqui arriscamos uma pergunta que talvez não tenha resposta: seria essa uma das explicações para o fato de o artista não costumar datar suas aquarelas urbanas?) Uma frase do filho do artista, o ecologista José Lutzenberger, em texto sobre o trabalho e a vida do pai citado no capítulo 2, reforça essa idéia de nostalgia: “Meu pai veio contratado por cinco anos. Acabou ficando porque se enamorou de Porto Alegre. A cidade era tão bonita naquela época.”

É provável que Lutzenberger entendesse a cidade (apesar de ser arquiteto) não como um espaço único de crescimento de prédios de concreto, mas muito também como um espaço de sociabilidade, de convívio entre “diferentes” (nas aquarelas em que, nas ruas da cidade, mendigos e vendedores se relacionam, ainda que de forma tensa, com casais bem-vestidos) e “iguais” (nos cafés em que predomina o público masculino e letrado, leitor de jornais).

(...)

Os trabalhos artísticos de José Lutzenberger são representações visuais que nos dão pistas sobre como se constituía o imaginário da sociedade porto-alegrense e gaúcha naquele momento e o lugar do artista e de seu grupo social naquela dinâmica. Representações que estão diretamente relacionadas a um estilo figurativo de pintar, em que as inovações modernistas ou abstracionistas não eram bem-vindas. Imagens que contam histórias, têm estampadas narrativas do cotidiano. Aquarelas que têm um compromisso com a realidade aparente, de semelhança com o real, como a arte acadêmica que dominava o Instituto de Belas Artes de então. Mas nem por isso tudo deixam de ter suas especificidades, tanto na escolha da temática como na forma de desenhar.

(...)

Lutzenberger não conseguiu traduzir no papel hábitos e costumes gaúchos exatamente como eles eram “de fato” (ou com a precisão do engenheiro-arquiteto), mas é provável que o artista tenha realmente almejado essa façanha impossível. Seu “fracasso” nessa transcrição, na verdade, tem como resultado um conjunto de obras que, se não podem ser entendidas como documentos históricos per si, podem ser compreendidas como um tratado visual de história – autoral, vasto, plasticamente bem resolvido e aberto a novas perguntas – e também como uma crônica porto-alegrense, com flagrantes cotidianos, de seus personagens populares e de suas paisagens rurais em contraste com o crescimento vertiginoso.

Nem um nem outro é mais real. Tanto um quanto o outro resumem a precisão do engenheiro-arquiteto e a poesia do artista, fundidas em um homem só.





* Trechos da Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção de grau de mestre do Curso de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)