Como são outros esses “Gaúchos na campanha” na aquarela de José Lutzenberger. O céu de um cinza demasiado indica o frio entrando pelo sul. Os três campeiros repontam o gado. O que vai mais atrás, escondido, toca a boiada pra frente. Os do lado, a galopito, fazem o costado, para que a tropa ganhe rumo. Na frente deve ir o sinuelo, o guia que indica o caminho para outros. Mas esses gaúchos são modelares, limpos, de aparência nórdica. O cavalo, típica raça clássica de sela, é alto, pelo fino, cabeça arabesca. Deve ser de cepa que, conta a lenda, foi lapiada pelo profeta Maomé. Suntuoso demais para nossa campanha errante. A aquarela nos limpou a terra. Sem terra, não temos drama. Sem drama, não temos alma. Esses gaúchos são um pouco condes em seus corcéis. Não associaria a eles o negro Bonifácio que o Simões Lopes Neto descreve entrando no povoado, com seu cavalo lobuno bem tosado e cola atada à moda canta-galo. Nem o Capitão Rodrigo Cambará, que um dia deflorou a alma atrás do muro do cemitério, espantado com aquela pele alva como o leite, como se tocasse um outro mundo. Nem o seu Omar Cortiça com seus parelheiros bem delgados, nem o Florival, de sobrenome Vaqueiro como quase todos os negros do oco do Ibicuí da Armada. Quem olha um tipo de cavalo, de longe, no campo, tende a pintar retratos de soberanos do espaço e da distância. Como aquele gaúcho, jogador de truco, bem pilchado e montado num cavalo de trote firme, que ao entrar nas estâncias provocara o chusme da peonada: - Lá vem aquele homem que parece um conde de baralho. Na aquarela, o campo ganha outros matizes. O cinza pedregoso, o espinheiro de cactus furtivo, as touceiras ressequidas pela geada, e a bombacha quase colada na perna do gaúcho. Mas ele está bem montado. Calçou o joelho na cabeça o arreio, soltou a barriga da perna, e vem no impulso. Agarra a rédea com certo cuidado. Esta é a ciência. Seu Mário Telles, de Uruguaiana sempre recomendou segurar a rédea como quem pega a mão de uma moça. Essa é a nobreza. No lampejo bárbaro, um halo de sutileza: a rédea segura com suavidade. Um cordão umbilical que nos une ao cavalo, todo músculos e ossos galgando distâncias por nós. E vejo então que ele engolfa o vento pelas narinas, sopra o ar pelo meio do freio, vai contido e pode parar, mas, num estalo, pode embalar ainda mais, ou rodopiar num segundo, dar voltas de novo, tamborilar o coração junto com o do cavaleiro, cruzar na direção contrária o minuano cortante, arquear a costela onde dobra coxília. Depois parar sereno, súbito equilíbrio. Ou arrancar a galope com os cascos em fogo. Quando amainar a
estafa, à noite, solto no piquete, o cavalo beberá a água da sanga
banhada de lua, quebrará a geada com os cascos, resistirá ao frio
emponchado pela alma selvagem agora domesticada. Quando voltar á
mangueira, ao primeiro assovio, cessará seu ímpeto de desconfiança.
A milonga do Mauro Moraes diz que, ao primeiro grito do homem, o
cavalo fica ali, maneado pelas raízes. E nos oferece as pastas
fortes que não temos. Encharca nossa pele de terra e sol. Alarga os
caminhos do campo. Liberta o olhas das aquarelas.
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