Mas porque esta exposição? Primeiro: devemos ressaltar seu caráter comemorativo. No corrente ano completam-se os cinqüenta anos da morte de José Lutzenberger. Segundo: cabe-nos observar que a última grande mostra de caráter retrospectivo ocorreu há exatos onze anos atrás, em 1990. Uma nova geração de público e de artistas se formou neste meio tempo e não teve oportunidade de fruir de uma visão de conjunto da obra de José Lutzenberger. O projeto da exposição, para efeitos de organização e atendendo as restrições físicas do espaço, foi organizada em módulos, que procuramos ressaltar no projeto museográfico: 1. cadernos de desenho da infância e da juventude, paisagens da Europa; 2. desenhos e paisagens da guerra; 3. arquitetura e engenharia; 4. retratos de família e diários; 5. Rio Grande do Sul rural: o gaúcho, o colono, o caixeiro viajante; 6. obras de caráter mítico: Os Farrapos e as Lendas Brasileiras; 7. imagens e paisagens de Porto Alegre; 8. retratos. Acreditamos que o maior valor que esta mostra possa ter é o de poder trazer a público um conjunto não muito numeroso, mas muito expressivo da obra deste artista que teve uma carreira curiosa. Conforme podemos observar, sua carreira de artista consolidou postumamente, sucedendo-se, após sua morte em 1951, inúmeras mostras de maior ou menor expressão, incluindo-se aí aquelas promovidas por coleções públicas e privadas. Ao longo destes cinqüenta anos muita coisa mudou no campo das artes plásticas no Rio Grande do Sul. Constituiu-se um efetivo campo de reflexão sobre esta atividade e também se consolidou um sistema de aprendizado e amostragem que, podemos assegurar, é efetivamente profissional e maduro. Infelizmente, a este processo de consolidação de conhecimento, não acompanhou o da efetiva documentação da produção. Somente agora, na última década do século que findou, é que tivemos um incremento das publicações sobre nossa produção plástica. José Lutzenberger nasceu em Altöetting, Alemanha, no dia 13 de janeiro de 1882, numa data que o inscreve na geração dos artistas estrangeiros que atuaram no processo de instauração de um campo plástico efetivamente moderno no Rio Grande do Sul. Lutzenberger se junta assim aos espanhóis Fernando Corona (1895-1979), Luís Maristany de Trias (1885-1964), Benito Castañeda (1885-1955), ao italiano Angelo Guido (1893-1969) e ainda ao tchecoslovaco Francis Pelichek (1886-1937) na constituição de uma visualidade local, seja através de suas atividades artísticas na pintura, no desenho e na escultura assim como na atuação como professores no Instituto de Belas Artes. A partir de 1929 ainda no mesmo campo, através da oficina de artes gráficas da Livraria do Globo comandados por Ernest Zeuner, se processaria na capital dos gaúchos outro processo de modernização, desta feita atingindo um público maior e menos afeito às inovações no campo plástico. Lutzenberger era oriundo de uma família bem colocada socialmente na sua cidade, o que permitiu que tivesse uma apurada educação e pudesse desenvolver seu talento de desenhista. Formando-se engenheiro-arquiteto, em Munique em 1906, passou de imediato a desenvolver intensa atividade na sua área, trabalhando em inúmeras prefeituras e escritórios na Alemanha e mesmo na Tchecoslováquia. Serve na França durante a Primeira Grande Guerra, produzindo um precioso conjunto de documentos visuais. Desmobilizado após a guerra, seu gosto pelas viagens faz com que aceite o convite de uma firma construtora para trabalhar no distante Brasil. É assim então que em 1920, aos 38 anos, transfere-se para Porto Alegre com um contrato de trabalho por um período determinado de cinco anos. O Engenheiro-Arquiteto Sua obra desenvolve-se, no Rio Grande do Sul, inicialmente a serviço da firma Weise, Mennig & Cia Engenheiros, que o contrata para uma temporada de cinco anos de trabalho entre nós. A seqüência de grandes projetos abre-se com o do Asilo do Pão dos Pobres e segue com o Clube Caixeiral, a Igreja de São José, Edifício Bastian Pinto, Palácio do Comércio e inúmeras residências tanto na capital assim como também as igrejas para Novo Hamburgo e Caçapava do Sul e ainda residências no interior. Sua trajetória gaúcha não é facilmente determinável: falta-nos uma identificação e localização de trabalhos e também a datação de alguns projetos conhecidos. A compreensão mais
exata do trabalho do engenheiro-arquiteto José Lutzenberger só se dá
se entendermos que esta profissão, no período de sua formação, era
mais ampla do que entendemos hoje. Gabriele Sterner esclarece que
Isto explica a riqueza e a amplidão dos projetos de Lutzenberger, que iam da mais complexa estrutura ao mais ínfimo detalhe de um lustre. Isto é facilmente comprovado na análise da grande quantidade de estudos para os vitrais da Igreja de Novo Hamburgo (infelizmente demolida) e para os painéis e vitrais da igreja de São José, obra na qual a participação de inúmeros artistas e artesãos merece destaque. Também podemos admirar as inúmeras pranchas de desenhos de mobiliário e de detalhes arquitetônicos, todos cuidadosamente descritos. Quanto ao seu estilo o mais simples seria dizermos que ele é eclético. Modo habitual de classificar boa parte da arquitetura de origem européia feita no Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX. Mas o escultor Fernando Corona, companheiro de trabalho e parceiro em alguns projetos, escreveu que “Lutzenberger possuía estilo próprio, original”. Em outro texto escreveu que “O estilo do Palácio do Comércio caracteriza bem a personalidade do artista que o concebeu, e tanto a fachada quanto os salões expressam o espírito decorativo de toda sua obra.“ Esta ênfase na originalidade e no decorativismo são retomadas e repetidas ainda em outros textos de Corona, que escreve, por exemplo, que “seus projetos não lembravam estilo algum do passado”. O requinte decorativista e a originalidade de suas concepções podem, em parte, ser apreciada em alguns projetos como a Igreja de São José, solução arrojada e original para o pequeno terreno que a acomoda, assim como na riqueza e equilíbrio da decoração, tanto interna quanto externa. Outro projeto, ainda presente na vida porto-alegrense, e com parte de sua elegância preservada (apesar da destruição de todo seu entorno) é o do Palácio do Comércio, ao que consta seu último trabalho. Os diversos estudos conservados para sua construção dão a dimensão do trabalho empreendido na busca da melhor solução. A riqueza da concepção de seus projetos demandava a presença de profissionais hábeis e talentosos para sua perfeita execução. É novamente Corona quem nos informa sobre isto, quando escreve que
Mas sua obra de arquiteto está ainda, repetimos, à espera de um atento estudioso, que poderia esmiuçar suas origens, suas influências e, sobretudo, poderia analisar a riqueza da concepção, a atenção dada aos detalhes, à preocupação perceptível com os futuros usuários de seus projetos, visível nos desenhos de interiores que acompanham algumas plantas baixas, a invenção de mobiliário, a concepção dos vitrais e pinturas murais. A Obra do Artista A rigor é difícil separar o engenheiro-arquiteto do artista desenhista e aquarelista. A idéia de artista e de técnico de Lutzenberger talvez possa ser entendida pelo depoimento de seu filho, José Antonio, que escreveu que
A carreira artística de José Lutzenberger tem, portanto este caráter excepcional de ter se consolidado postumamente, através das inúmeras mostras e homenagens que lhe foram dedicadas, a partir da mostra retrospectiva no Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano em 1955. Sua obra de aquarelista e desenhista caracteriza-se pela excelência técnica e pelo caráter de crônica de que se reveste. Observamos um grande investimento na anotação emocionada dos pequenos acontecimentos e visões do dia a dia. Isto se multiplica por toda a sua obra, independente da segmentação que possamos dar a ela. Lutzenberger, desde seus primeiros desenhos (nos cadernos da juventude), da paisagem européia, nos desenhos da Primeira Grande Guerra na França e, principalmente, naqueles do Brasil: a paisagem porto-alegrense, seus habitantes, com seus costumes e hábitos; no homem do campo, seja ele um gaúcho tratanto com o gado, seja um colono repousando ou ainda um caixeiro viajante em atividade; na mítica descrição dos revolucionários farroupilhas e ainda nas lendas brasileiras e gaúchas e, principalmente, nos registros primorosos de seu diário familiar deixou a marca distintiva do cronista. Poderíamos dizer que sua obra é uma espécie de crônica de sua vivência, através da observação atenta, amorosa, precisa, irônica muitas vezes, quase sarcástica em vários momentos, mas sempre documental como uma crônica. Sempre percebemos a preocupação de registrar, de prender através do desenho ou da aquarela o calor de um momento único e irrepetível. Esta talvez seja a razão, ou uma das razões, do enorme interesse com que olhamos cada um de seus trabalhos, mesmo que os temas se repitam. Afinal, a vida é sempre igual e sempre diferente e não vai nisso nenhuma mentira ou despropósito. Porto Alegre, maio
de 2001.
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